Na dúvida, não diga nada
27 de janeiro de 2021

Imagem: Arquivo Pessoal

Muito Além da Transição

Passar pelo processo de transição capilar é um processo demorado e doloroso. É um caminho de descobertas e autoconhecimento. Mas apesar de todas as dificuldades tras grandes aprendizados. Te convido a conhecer a minha história.

Você precisa se aceitar do jeito que você é!

Disse uma das minhas tias, enquanto eu fazia minha primeira escova progressiva, que inclusive foi uma experiência dolorosa, no corpo e na alma.

Me recordo, que na infância minha mãe me levava para cortar os cabelos, mas sempre na lua crescente, que era para ajudar no crescimento dos fios.

Ela, tinha muito orgulho dos meus cabelos, eu por outro lado, queria que eles fossem como os dela, lisos e claros.

Para isso, aos 14 anos, aproximadamente, fiz minha primeira escova progressiva.  foi uma experiência terrível. Após passado o produto e deixado agir por um tempo, meus cabelos foram secos com um secador e escova e puxado, puxado, puxado, eu tentava segurar minha cabeça, mas realmente a cabeleireira era mais forte que eu. A temperatura queimava meu couro cabeludo e algumas lágrimas escapavam o cantinho dos meus olhos.

Depois de todo o processo de escovação, chegava o momento de chapar,  a prancha chegava bem próxima do meu couro cabeludo e em alguns momentos rolavam algumas queimaduras na minha teste, orelhas, nuca. Para não sofrer eu ouvia e também dizia a mim mesma “para ficar bonita a gente tem que sofrer”.

Eu gostava do resultado, me sentia bem, mas só de pensar que dali a alguns meses teria que passar por tudo novamente, era doloroso pensar.

Você pode neste momento estar se perguntando, pra que esse desabafo, com tom de chororô a beleza dói mesmo e não são apenas crianças negras que sofrem, mulheres brancas também, não só para alisarem seus cabelos, mas por tantos procedimentos estéticos, a beleza dói mesmo e não é só para você.

É, eu sei disso, mas meu desabafo não é por uma menina negra que queria ter os cabelos lisos, igual aos outros.

Depois de tantos anos, puxando, queimando e alisando, sei lá, decidi que era a hora de mudar.

Sempre gostei de cabelos curtos, mesmo desejando que eles chegassem até a cintura, não resistia a uma tesoura.

Então, quando vi que minha vida estava tomando um rumo diferente de tudo que eu já tinha pensado, minha primeira providência foi cortar os cabelos.

Cortei, alisei, e me senti pronta para recomeçar.

Tempos depois, durante uma visita a casa de minha mãe, me levante pela manhã  disse a minha irmã : ” Não vou mais alisar os cabelos”.

Ela achou o máximo, até me deu seus brincos favoritos, de argolas enormes. Para coroar a decisão, fomos juntas ao salão, fazer meu primeiro corte. Não era ainda um Big chop, mas já era um big passo.

Retornei a minha cidade, tentando me adaptar a uma nova realidade, haviam dias  mais livres, mais leves, outros me consumiam mais tempo, mas pelo menos eu estava vivendo, pois não sabia como seria o dia seguinte, deixei de viver no piloto automático.

 Durante muitos anos, as pessoas me perguntavam, sobre como eram meus cabelos e eu simplesmente não sabia, porque cresci acreditando que era um cabelo ruim.

Transição, diz o dicionário que se trata de uma passagem de um lugar, de um estado de coisas, a outra. Para mim, transição significou muito mais.

Teve sentido de liberdade, de vida, movimento escolha e descoberta.

Conheci técnicas de alongamento e tantas outras possibilidades, tantas formas de ser eu mesma mas sempre de um jeito diferente, que eu jamais havia pensado em 20 anos. 

Mas, ainda faltava alguma coisa. E me lembrei de quando era criança, que minha mãe me levava ao salão para cortar o cabelo, lembrei do constrangimento que eu sentia, por outra pessoa pegar nos meus cabelos. Nunca era alguém como eu, de  cabelo “ruim” (como pensava).

Agora eu era uma mulher preta, então precisava de outra preta para cuidar dos meus cabelos,  uma que iria me entender.

Apesar de hoje, termos muitas pessoas se especializando nos cuidados com os cabelos afro, ainda temos muitas pessoas que acreditam que para ficar bonita é preciso sofrer. Mesmo assim, fui muito feliz, conheci uma preta que não apenas devolveu meus cachos, mas me abriu os olhos

Quando me sentei em sua cadeira, ela tratou meus cabelos com tanto carinho, falamos sobre dor. Eu lhe contei sobre minhas experiências e o que eu queria fazer na profissão ( curso psicologia) e ela me contou das inúmeras pessoas que já sentaram ali e choraram suas dores, não dizendo que ali era uma espécie de divã mas me contando que as pessoas necessitam serem ouvidas, com carinho, com empatia, me disse também de sua profissão, que foi preciso enfrentar a tendência de cabelos alisados e  luzes perfeitas para ceder espaço aos crespos, as tranças aos cachos. A Maria me contou que já atendeu pessoas que acreditavam e repetiam o mantra: “para ficar bonitas é preciso sentir dor”, que mesmo na colocação das tranças, as dores e o sofrimento assemelhavam as queimaduras das escovas e pranchas, e me disse que não é preciso nada disso, que tranças apertadas demais podem causar tração, mais do que isso, causam violência física e emocional, como se para ser bonito é preciso deixar de ser quem se é.

Foi com a paciência da Maria e sua fala calma, mansa que me dei conta das vezes que passei por isso, do quanto acreditei que precisava me torturar e me maltratar para ser eu. Foi nessa conversa que eu vi o quanto minha profissão tem espaço, porque tem muita gente precisando ter voz,  tem muita gente precisando entender de verdade o que é esse tal de “se aceitar”, o que é de verdade o autocuidado que não consiste em encrespar os cabelos, mas em ter suas angustias ouvidas com empatia e ser tratada como  tal.

Se as pessoas  se revelam para alguém que as ouvem e acolhem seus sofrimentos enquanto tratam  seus cabelos, o que pode fazer um  profissional dotado de ferramentas que além de ouvir empaticamente pode estar a seu lado e te ajudar a compreender que a transição capilar vai muito além de  sair da química, ela lida com questões internas, preconceitos vividos desde a infância. Pensei na minha profissão, porque enquanto estava sentada na cadeira da Maria, eu então compreendi que precisamos de fortalecimento, eu e meu cabelo.

Ana Paula
Ana Paula
Gosta de gente, de ouvir e de falar. Ama um áudio longo, café e chá. Tereré também, anota aí na lista, e mais um tanto de outras coisas que até Deus dúvida.. Há, é psicóloga também, pode indicar. E caso precise, pode com a Ana contar ;)

2 Comments

  1. Ana Rosa disse:

    Bom dia , filha! Em primeiro lugar quero lhe dizer que amoo o qvc escreve😚
    E depois que cada um sabe o que vai dentro de si, eu sonhei mto em ter uma filha de cabelo crespinho sempre achei mto lindo, nas sempre sofri junto com vc pois sei o que vc sentia e sente.
    Mas sinto mais orgulho de como vc vence cada ,dor, cada mágoa, cada discriminação cada obstáculo que se apresenta no seu caminho.. isso mosta sua grande força. bjd❤️

  2. Sou a Monique De Oliveira, gostei muito do seu artigo tem
    muito conteúdo de valor, parabéns nota 10.

    Visite meu site lá tem muito conteúdo, que vai lhe ajudar.

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